Os pacotes do Max

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Quem viveu no Brasil na década de 1980, lembra-se sem muitas saudades de expressões como ‘inflação galopante’, ‘hipervalorização do dólar’ ou ‘Overnight’. O Brasil vivia um momento delicado de sua economia, onde a vida média de um ministro da fazenda era de seis meses ou menos, e a insatisfação popular com todas as dificuldades econômicas que lhes eram impostas era muito grande. Para tentar estancar esses graves problemas, surgiram vários pacotes econômicos ao longo daqueles anos. Eles ganharam nomes de presidente (Plano Collor), de ministro da fazenda (Plano Bresser) e até de estações do ano (Plano Verão). Eram em sua maioria planos populistas e que davam certo por um período de tempo, mas como a raiz do problema não era atacado e eram pacotes superficiais, os problemas retornavam com até mais força do que antes, aumentando o caos econômico e social.

Na F1, houve um tempo em que o então presidente da FIA Max Mosley tentou conduzir as regras da F1 através de pacotes e que como ocorreu no Brasil, deu certo por um tempo, mas logo os problemas que esses pacotes, muitas vezes mal feitos e impostos goela abaixo, atacavam voltavam com mais força do que antes.

Vinte e cinco anos atrás a F1 vivia ainda o rescaldo de um dos finais de campeonato mais emocionantes e polêmicos da história, mas havia também a expectativa do novo regulamento técnico imposto pela FIA para 1998. Os carros sofreriam grandes mudanças técnicas com o intuito de diminuir a velocidade, mas que na verdade se tratava mais de dar um choque nas equipes para que elas saíssem do zero e com isso, o reinado da Williams acabasse ou fosse amenizado. As mudanças foram implantadas em 1996, ano em que a Williams venceu doze de dezesseis corridas, coroando Damon Hill como seu campeão. Analisando com o devido distanciamento histórico, havia a impressão errada de que o inglês não era digno de se tornar campeão da F1 e que Damon só venceu pela qualidade superior do seu carro. Porém, a impressão na época era essa e o domínio da Williams não era exatamente novo. Desde 1992 a equipe do Tio Frank construía o melhor carro do pelotão e se não fosse o talento de Schumacher e a esperteza da trupe da Benetton em explorar as minúcias do regulamento da época, provavelmente a Williams teria vencido tudo na década de 1990.

Mesmo com um campeonato espetacular em 1997, todos esperavam ansiosos pelos novos regulamentos em 1998, onde seriam impostos os esquecíveis pneus com ranhuras e havia a promessa de mais equilíbrio entre as equipes. Segundo Mosley, era tudo em nome da segurança, mas o que se viu foi uma mudança de bastão, com a McLaren dominando em 1998 e os carros tão velozes como em 1997. Não por coincidência, a McLaren tinha Adryan Newey em suas fileiras, homem que projetava os carros vencedores da Williams. Novamente o talento de Schumacher, já na Ferrari, salvou a F1 de um domínio modorrento.

Um pulo de cinco anos e a F1 viveu uma temporada arrasadora da Ferrari em 2002. Para você que posta fotos da Ferrari de Schumacher daquele tempo e diz ‘saudades em que a F1 era competitiva’, lamento lhe informar que a F1 era tudo, menos competitiva. Basta uma estatística daquele ano para demonstrar isso. A Ferrari marcou exatos 221 pontos no Mundial de Construtores em 2002, enquanto as demais dez equipes marcaram…221 pontos! Isso mesmo amiguinho. A Ferrari fez o mesmo número de pontos do que as outras equipes somadas. Além de todo esse domínio, houve o escândalo da troca de posições na Áustria e a Ferrari se tornou a equipe mais antipática da F1 na época. Porém, o time de Jean Todt e companhia nem ligava. Como a ação na pista naquela temporada não era muita, as câmeras de TV focalizavam bastante o pit-wall da Ferrari, que não escondia de ninguém que escolhia o vencedor da corrida. Na Hungria, enquanto Barrichello era escoltado por Schumacher, Ross Brawn foi flagrado comendo placidamente uma banana, meio que dando uma ‘banana’ para os fãs da F1. Parecia que nada poderia segurar a Ferrari. Foi então que Max Mosley, como se diz no Ceará, colocou uma capa nas costas e a cueca em cima da calça e se colocou como o ‘salvador’ da F1.

O então presidente da FIA decidiu que algo deveria ser feito para que a F1 voltasse a ter emoção. Se não havia nada a ser feito no campo técnico como cinco anos antes, Mosley resolveu mexer em algo que ele poderia impor, que era no campo esportivo. E assim várias novas medidas mudava a cara da F1 naquele 2003, em particular na classificação. Ao invés da classificação de uma hora de duração de pista livre que definia o pole-position, os carros sairiam um a um na pista para dar sua volta voadora. No formato pré-2003, o piloto tinha quatro chances de fazer uma volta rápida e com isso, era praticamente nulo a chance de uma grande surpresa acontecer. Com o piloto tendo apenas uma chance, a possibilidade de erro (e surpresas) era muito maior, mas Mosley não se deu por satisfeito. Ele queria a desordem!

Os pilotos não apenas teriam uma única chance na classificação. Eles teriam que fazer isso usando o combustível que largariam no domingo, com os carros ficando no chamado no ‘sistema de parque fechado’. A intenção de Mosley era clara: ele queria surpresas e que o grid ficasse misturado, com carros mais ‘leves’ largando na frente. Como efeito colateral instantâneo, o warm-up, tradicional aquecimento no domingo pela manhã, estava morto e enterrado. A pontuação também mudava, diminuindo bastante o valor da vitória, pois ao invés de quatro pontos, a diferença entre o primeiro e o segundo colocado era de apenas dois pontos. Por incrível que pareça, quem mais reclamou disso tudo não foi a Ferrari, mas McLaren e Williams, grandes rivais dos italianos.

Porém, para infelicidade de Ron Dennis e Frank Williams, aparentemente o pacote de Max deu certo. Logo na primeira prova em Melbourne, vimos Frentzen da Sauber na segunda fila do grid e a corrida foi emocionante. Após muito tempo, não havia Ferrari no pódio. As surpresas não pararam por aí. Logo na etapa seguinte a Renault, com um tanque mais vazio em seus carros e participando de um treino extra para as equipes que se comprometessem a testar menos durante o ano, colocou sua dupla de pilotos na primeira fila e o jovem Fernando Alonso se tornava o poleman mais novo na história da F1 até então. Em Interlagos, Mark Webber colocou seu Jaguar na segunda fila. Não faltaram surpresas no grid e corridas emocionantes. Mesmo Schumacher tendo sido campeão, havia a sensação de que o pacote de Max Mosley havia dado certo. Será mesmo?

Olhando vinte anos atrás como foi o campeonato de 2003 se desenrolou, mais do que as medidas impostas por Mosley, a F1 viveu um ano com várias nuances. Na primeira corrida na Austrália, Reginaldo Leme falou na transmissão da TV Globo que aquela corrida tinha sido mais emocionante do que toda a temporada de 2002. Mas seria apenas por causa do pacote do Max? Choveu naquele dia em Melbourne e a corrida foi empolgante por causa da pista que secava, além das equipes ainda tateando um novo regulamento. Por sinal, o clima foi bem decisivo naquele ano. No Brasil houve a famosa corrida em que caiu uma tempestade em Interlagos e Fisichella deu a última vitória da Ford na F1, mas quando chegou o verão europeu, o calor recorde fez com que os pneus Michelin se sobressaíssem frente aos Bridgestone, fazendo com que a Ferrari, que ainda tinha o carro mais equilibrado do pelotão, sofresse. Schumacher tomou uma volta do vencedor Alonso na Hungria, para se ter uma ideia! Porém, quando o outono chegou e a temperatura baixou, a Ferrari voltou a vencer corridas, sem contar a denúncia de que os pneus Michelin alargavam de forma proposital no asfalto mais quente. Em condições normais de temperatura e pressão, a Ferrari ainda tinha o melhor carro e venceu. McLaren e Williams cresceram muito em comparação ao ano anterior, mas o principal fator foi que ambas se aproveitaram bastante da melhor janela de desempenho da Michelin em pistas quentes para vencer muitas corridas no escaldante verão daquele ano, lembrando que a F1 não tirava férias em agosto, auge do verão europeu e se correu em Hockenheim e Hungaroring, locais de derrotas amargas da Ferrari naquele ano.

Kimi Raikkonen surgia como um piloto muito talentoso, enquanto Juan Pablo Montoya mostrava sua enorme velocidade e fogosidade, mas nos momentos finais do campeonato, Michael Schumacher mostrou tudo isso e bastante experiência para bater seus rivais e ficar com a sexta taça, mesmo fazendo uma corrida bem errática na final em Suzuka.

Então, passados vinte anos daquela temporada marcante na F1, podemos afirmar que 2003 foi um grande campeonato mais pelas minúcias daquele ano, do que pelo pacotão de medidas de Max Mosley.

Veio 2004 e mais acostumado com as novas regras, Ferrari e Schumacher tiveram um ano parecido com o de 2002 e mais uma vez dominaram o campeonato. Mosley, porém, sabia o que fazer: era só impor outro pacote de medidas. Em 2005 as equipes não podiam trocar pneus durante as corridas e novamente a Ferrari se deu mal, com a Bridgestone sucumbindo a um pneu que teria que durar a corrida inteira. Max Mosley percebeu que seus pacotes não apenas estavam ‘salvando’ a F1, como poderia ser usado como ferramenta política. Mosley usava de algumas medidas populistas para pressionar as equipes a aceitar suas mudanças. Certa vez o dirigente inglês veio com uma ideia de que as equipes seriam obrigadas a troca de pilotos dentro da mesma temporada. Em outra, ao ver o belo Lotus negro de Ayrton Senna ao meio às lembranças da morte do brasileiro em 2004, Mosley sugeriu que os carros deveriam mudar e ficar parecido com o de vinte anos antes, com câmbio manual, pneus largos e pouca tecnologia.

As equipes da F1, das grandes às pequenas, já estavam de saco cheio dos arroubos de Mosley, sempre ameaçando com um pacote novo, enquanto Bernie Ecclestone, o todo-poderoso da F1, lavava as mãos para o seu velho aliado. No entanto, quando as equipes se juntaram e falaram em cisão no final da década 2000, Bernie entrou em cena para apaziguar a turma como sempre fez: ofereceu mais dinheiro às equipes. Mosley foi ficando cada vez mais isolado e quando surgiu um sórdido vídeo do velho dirigente com prostitutas em uniformes nazistas, o tempo de Max na FIA terminou, assim como os pacotes de ‘salvação’ da F1.

Max Mosley saiu da vida pública até aparecer morto em 2021, provavelmente tendo cometido suicídio após ter descoberto um câncer terminal e ainda triste com a morte do filho pouco tempo antes.

No Brasil, um plano mais sólido e planejado surgiu em 1994 com o Plano Real, onde finalmente houve uma certa estabilização da economia, mesmo com alguns problemas aqui e ali. Já na F1, houve uma certa estabilidade com a saída de Mosley, mas como muitas vezes a história é cíclica, mais uma vez a relação entre as equipes de F1 e a FIA não está às mil maravilhas, com o presidente Mohammed bin Sulayem tentando impor algumas medidas polêmicas, enquanto as equipes e a própria F1 não concordam com o estilo do árabe à frente da FIA. Tomara que não surja nenhum pacote salvador para contornar o problema!

E vamos para mais uma temporada!

Abraços!

João Carlos Viana

JC Viana
JC Viana
Engenheiro Mecânico, vê corridas desde que se entende por gente. Escreve sobre F1 no tempo livre e torce pelo Ceará Sporting Club em tempo integral.

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