Paradoxos

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A análise esportiva é assombrada por alguns paradoxos que demandam bom senso e muita mineração de dados para que possam ser interpretados, caso a caso, com um mínimo de justiça. Respostas automáticas, ou motivadas por preferências pessoais de qualquer natureza, podem até ser propostas de forma coerente, mas frequentemente se erguem sobre pressupostos claramente equivocados.

Quando um competidor domina determinada era, por exemplo, como avaliar com justiça o nível dos adversários que enfrentou? A grandiosidade dos números atrelados a hegemonias bastam, por si só, para assegurar que um multicampeão foi superior ou mais eficiente do que grandes atletas que calharam de ser contemporâneos em suas respectivas eras? E quando vemos uma geração que aparenta ser especial, não estaríamos, na verdade, vendo esportistas que talvez não sejam bons o bastante para dominar as competições?

Quando transportado para o universo do esporte a motor, o questionamento ganha ainda mais camadas, pois existe também o fator máquina, a disparidade de condições, e aí a única certeza que resta é a de que explicações simplistas e muito seguras de si mesmas estão, inevitavelmente, desconsiderando muitos fatores que deveriam estar sendo levados em conta.

E a coisa piora, pois dentro do leque ofertado pelo esporte a motor existem também muitas variações a respeito da influência do equipamento na construção de resultados. É necessário observar, por exemplo, que ao contrário do que se observa na Fórmula 1 desde a introdução de áreas de escape asfaltadas, a motovelocidade continua punindo rigorosamente quem desrespeita os limites impostos pela aderência oferecida entre pneus e pista. E, como se este fato isoladamente já não bastasse para dar o devido distanciamento entre pilotos a partir do quanto estejam dispostos (e aptos) a reduzir as respectivas margens de segurança, há ainda a amplitude muito maior para a variação de estilos de pilotagem, dada a possibilidade de angulação, de modulação de frenagem entre os eixos dianteiro e traseiro, e as influências do próprio posicionamento do corpo sobre transferência de peso e resistência aerodinâmica, entre outros aspectos.

Como resultado de tais fatores, observa-se que a influência do piloto dentro do desempenho entregue pelo conjunto homem/máquina é habitualmente maior quando se equilibra sobre duas rodas do que quando se apoia sobre quatro. Noutras palavras, na maioria das ocasiões, ao menos no contexto atual, o piloto excepcional irá dispor de janela mais ampla para dar vazão à sua superioridade em motos do que em carros. Notem que não estamos aqui sugerindo que um universo seja mais rico, mais interessante ou mais justo do que outro, mas apenas dando o devido valor a evidências físicas incontornáveis.

Naturalmente tal constatação não torna irrelevante o peso da máquina na construção dos resultados, inclusive porque não estamos falando apenas sobre desempenho bruto aqui, mas também em uma forma mais ampla de comportamento e interação, que se traduz, por exemplo, no grau de confiança que uma motocicleta é capaz de transmitir a quem a conduz. A esse respeito, é justo observar que já tivemos sim campeonatos definidos majoritariamente em razão do equipamento. Mas, como já dissemos em coluna recente, a história da motovelocidade, sobretudo em sua categoria de topo, tem sido a história da hegemonia de grandes pilotos, intercalada por breves períodos de “vácuo”, ou de imposição de um ou outro equipamento.

Numa análise automática, portanto, seria fácil concluir que estamos passando por um desses momentos de vácuo, resultante da aposentadoria de uma geração excepcional, e, sobretudo, dos problemas físicos que Marc Márquez vem enfrentando há dois anos. O título de Joan Mir em 2020, ainda que respaldado pelos méritos de quem somou os pontos possíveis ao longo de toda a temporada, certamente poderia ser descrito como ocasional, restando esclarecer se o triunfo de Fabio Quartararo em 2021 poderá marcar o início do domínio de uma nova geração, ou se entrará para a história como uma conquista episódica ou contextual.

Todavia, uma análise mais aprofundada a respeito do cenário esportivo atual da MotoGP irá indicar peculiaridades que, sob aspectos importantes, o diferenciam dos históricos e cíclicos períodos de vácuo de lideranças. De imediato, há que se observar o efeito da grande oferta de talentos, peneirados por categorias de base extremamente competitivas e moldados a partir de conhecimentos muito mais precisos a respeito de como ser rápido e como poupar pneus e equipamento. Conforme Valentino Rossi observou em seu último e menos competitivo ano na categoria rainha, mesmo os pilotos que estão se digladiando pelas últimas posições estão dando tudo de si e pilotando em altíssimo nível.

Da mesma forma, é fácil perceber que vivemos um momento de raro equilíbrio entre os equipamentos disponíveis, sem que as fabricantes tenham aberto mão das vantagens e desvantagens de uma série de especificações distintas, a começar pela própria disposição dos cilindros em seus motores. Na prática, isso significa que em pistas mais equilibradas entre retas e curvas temos uma tendência à equalização, ao passo que características mais acentuadas de determinadas praças certamente irão favorecer uma ou outra marca, promovendo uma interessante flutuação de desempenhos ao longo do ano.

Não parece justo, portanto, resumir o momento atual meramente como um vácuo de liderança. Em vez disso, o bom senso sugere que sim, estamos vivendo um período de transição entre hegemonias, mas essa sensação se deve mais à qualidade do desempenho que vem sendo entregue mesmo pelos últimos colocados do que pelas fragilidades de quem tem andado na frente. Quase, e enfatizo o quase, como se a multiplicidade de líderes em potencial termine por fazer com que ninguém lidere de fato.

Olhando por esse prisma, o que temos diante de nossos olhos está longe de representar uma temporada desinteressante.

 

 

Em Losail, tal cenário se manifestou, por exemplo, num grid de largada em que o terceiro e o sétimo colocados estiveram separados por apenas 67 milésimos, ou que apenas 52 milésimos separaram o 17º colocado do 21º.

Na corrida, da mesma forma, o que vimos foram grandes pelotões correndo próximos durante a maior parte da prova, que essencialmente acabou sendo definida em favor de Enea Bastianini em razão de sua notória capacidade de cuidar bem dos pneus. Uma vitória de equipe satélite, bastante sintomática do momento atual vivido pela categoria, e carregada de emoção dada a perda recente e muito lamentada do grande Fausto Gresini.

Ainda que tenhamos visto apenas a primeira etapa daquela que promete ser a mais longa temporada na história da categoria, algumas observações importantes parecem dignas de registro.

Tendo se tornado absolutamente dependente de Marc Márquez em anos anteriores, a Honda nitidamente buscou tornar sua máquina mais amigável aos pilotos, e o excelente desempenho de Pol Espargaró, que poderia ter terminado na segunda posição se não tivesse tão comprometido com a luta pela vitória, não deixa dúvidas de que houve avanços nesse sentido.

A Suzuki, por sua vez, obteve avanços nítidos em velocidade de reta, tanto através de motorização quanto de aerodinâmica, e surge como um equipamento que, ao menos nesse início de ano, parece ter condições de brigar constantemente pelas primeiras posições.

Vencedora da prova inicial e fornecedora de equipamento para um terço do grid, a Ducati segue competitiva, mas algumas luzes amarelas parecem ter se acendido, uma vez que o desempenho das equipes satélite foi em grande parte superior ao do time de fábrica. Antes de abandonarem a disputa, tanto Jack Miller quanto Peco Bagnaia disputaram posições na segunda metade do grid, ainda que a progressão do italiano, atual vice-campeão do mundo, tenha sido notória. Paralelamente, resta observar nas próximas etapas se a péssima largada de quase todas as Ducatis terá sido uma coincidência infeliz, ou reflexo de alguma questão técnica a ser resolvida.

A Aprilia, que volta a correr com equipe própria após 18 anos, também mostrou grande competitividade ao longo do fim de semana, sobretudo com Aleix Espargaró, mas é de se esperar que Maverick Viñales também eleve o próprio jogo nas próximas etapas. E mesmo a KTM, certamente a fabricante que mais enfrentou problemas em Losail, conquistou uma sólida segunda posição com Brad Binder.

De fato, entre todas as marcas, a que parece menos competitiva neste momento é justamente a Yamaha, atual campeã. Apesar dos esforços de Quartararo, Morbidelli, Dovizioso e do estreante Darryn Binder, o ritmo necessário para acompanhar os ponteiros jamais esteve lá. Com o avanço nítido apresentado pela concorrência, a impressão que fica é de que ou a marca dos diapasões resolve de vez os problemas que há tanto tempo vêm prejudicando seu desempenho, especialmente em retas, ou corre o risco de ficar de fora da briga pelas melhores posições.

 

 

Levando-se em conta tudo o que enfrentou nos últimos dois anos, e em especial após o tombo que abreviou sua crescente campanha em 2021, o desempenho entregue por Marc Márquez foi digno de nota. Terceiro no grid e quinto na corrida, o octacampeão carrega sobre seus ombros não apenas cicatrizes, mas o peso da continuidade de uma história escrita por hegemonias, num momento em que o sarrafo está mais alto do que nunca.

Sua batalha para voltar à melhor forma e retomar o trono que perdeu – não por falta de desempenho, mas de condições físicas – será, em essência, a luta entre a hegemonia e o equilíbrio, travada em altíssimo nível, tanto de pilotagem quanto de engenharia.

Independentemente do desfecho que venha a ser escrito, a certeza é de que estamos testemunhando um momento muito especial na história do motociclismo de velocidade.

 

 

Impossível encerrar este texto sem registrar o excelente resultado obtido por Diogo Moreira, 6º colocado em sua estréia na extremamente competitiva Moto3.

Um início muito promissor, tanto mais quando se observa a solidez de sua progressão ao longo da corrida.

Que seja o início de uma carreira internacional consistente e, acima de tudo, que tenhamos um ano livre se acidentes sérios, em todas as categorias.

 

Forte abraço, e uma ótima temporada para todos nós

Marcio Madeira

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

2 Comments

  1. Leandro disse:

    Pela primeira vez pude acompanhar as três categorias e me senti muito feliz.

    Ótimas provas e ainda tive a surpreso do Diogo Moreira, que confesso, não esperava muito dele, pois não acompanho, mas que fez uma corrida sólida e me pareceu, muito segura.

  2. Fernando Marques disse:

    Marcio Madeira,

    nada melhor ler sobre Motovelocidade , do que uma coluna de quem sabe tudo do riscado.
    Excelente coluna, bem reflexiva, e a história do GP do Catar 2022, abertura do Mundial super bem contada e analisada.
    Resultado final da corrida para mim cheio de surpresas.
    1) Vitoria do Enea Bastianini – ainda mais a bordo de uma Ducati não oficial de fábrica.
    2) Yamaha fora das primeiras posições
    3) Paco Bagnaia (a meu ver revelação de 2021, ) longe também das primeiras posições. Aliás minha torcida para 2022 é ele e o Marc Marquez

    Sobre a Moto GP em si, nada melhor do que ter motos e equipes no mesmo nível de competividade entre elas e pilotos. Não tenho dúvidas que a temporada de 2022 será sensacional

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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