Pelos olhos de Mike – Le Mans 1955 – Parte 1

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Recentemente li a biografia de Mike Hawthorn que ele escreveu em 1957 e abrange sua carreira até aquele ano

“Challenge Me the Race” , editado pela companhia literária William Kimber and Co Limited, sua primeira edição foi publicada em abril de 1958, tenho em mãos a quinta edição de janeiro de 1959

Nesse livro Mike escreve reminiscências sobre a sua carreira, fiquei particularmente focado no capítulo em que ele descreve os dias e o ocorrido em Le Mans 1955, desde a participação na prova e o acidente, sua visão sobre como aquele dia ocorreu é bem peculiar de uma mentalidade diferente de nossos dias, por isso a partir de agora tomo a liberdade de trazer para vocês uma tradução do capítulo 19, na seção intitulada “Triunfo e Desastres”.

Com vocês as palavras daqueles dias pelos olhos de Mike Hawthorn

Na chegada a Le Mans:

“Chefes de equipe, pilotos, mecânicos, cronometristas, fiscais de pista, jornalistas e fotógrafos, esposas e amigas e todo o grande exército de pessoas/fãs de todas as partes que compõem o cenário do automobilismo agora convergiram para a cidade interiorana francesa de Le Mans para participar do maior evento do automobilismo, as 24 horas da corrida de Endurance, o grande evento de carros esportivos do ano.

Para a maioria dos pilotos, Le Mans é uma etapa importante para somar no seu currículo e uma vitória na classe ou uma boa colocação eleva o handicap do Índice de Desempenho, sendo uma recompensa adequada pela sua participação, mas eu estava lá no meio da competição em busca de uma vitória absoluta, conduzindo um carro que já tinha reputação consolidada nesta prova, pois os Jaguares venceram em 1951 e 1953 e ficaram em segundo lugar em 1954.

Tínhamos em nossa equipe os modelos tipos D, com potência aumentada e aerodinâmica aprimorada, pilotados por Rolt e Hamilton, Beauman e Dewis, Stewart e eu, e apoiada por independentes da América e da Bélgica.

A Ferrari, vencedora em 1954, tinha em sua equipe modelos de seis litros e de quatro litros pilotados por Castellotti e Marzotto, Maglioli e Hill, Trintignant e Schell, enquanto a Maserati tinha Mieres dirigindo com Perdisa e Musso com Valenzano.

Os Aston Martins foram dirigidos por Collins e Frere, Salvadori e Walker, Brooks e Riseley-Prichard.

A Mercedes-Benz tinha uma equipe dos novos 300 SLR de dois lugares, que já eram vistos com admiração desde a vitória de Stirling Moss com Jenkinson na Mille Miglia. Seus pilotos eram um grupo verdadeiramente diversificado e forte; Fangio, fez dupla com Moss, Kling, o único alemão, com Simon e, finalmente, o veterano Pierre Levegh ganhou uma Mercedes em reconhecimento à sua façanha em 1952, quando quase arrebatou a vitória da Mercedes na quele ano depois de dirigir seu Talbot sozinho durante todo o percurso, tendo quebrado o carro quando faltavam apenas 75 minutos para terminar a prova; ele tinha como co-piloto John Fitch. Os alemães sabiam que seus freios a tambor montados no chassi, embora de tamanho enorme, não poderiam competir com os freios a disco dos Jaguares; eles já haviam enfrentado problemas com o rompimento dos tambores e seus carros eram equipados com quatro botões no painel de instrumentos que permitiam ao motorista esguichar óleo em qualquer freio onde o tambor apresentasse defeito para evitar que ele travasse – um expediente bastante desesperado por si só.

Para compensar a carga nos freios, eles criaram um freio a ar surpreendente. Uma alavanca no painel acionava macacos hidráulicos que levantavam toda a traseira do carro, para apresentar uma grande superfície plana que rapidamente desacelerava o carro em altas velocidades. Naturalmente obstruiu a visão do piloto através do espelho retrovisor e os organizadores insistiram que janelas deveriam ser feitas nas abas antes do dia da corrida.

Eu deveria estar pilotando com Jimmy Stewart, mas ele foi obrigado a desistir do automobilismo. Ele machucou gravemente o cotovelo em um acidente com Aston Martin em 1954 e o danificou novamente quando seu Jaguar capotou em Nurburgring em 1955; ele foi avisado de que qualquer dano adicional provavelmente resultaria na perda do braço e ele teve que desistir.

Portanto, a Jaguar trouxe Ivor Bueb para pilotar comigo. Ele havia sido testado durante um dia de testes da Jaguar em Silverstone, algum tempo antes, depois de uma carreira brilhante em monopostos de 500 cilindradas, ele provou ser rápido. Eu tinha argumentado fortemente a favor de Don Beauman, que era meu amigo e, de certa forma, um protegido, enquanto minha oficina preparava seus carros e eu o aconselhava em suas corridas.

Beauman, portanto, conseguiu a vaga e Bueb ficou furioso. Agora estávamos pilotando em dupla. Era uma situação complicada, mas Ivor que é um comerciante de automóveis e franco, e por isso logo estabelecemos um relacionamento comercial e começamos nosso programa de corridas. Passei algum tempo aprendendo o circuito durante o período de treinos diurnos, e quando chegou a vez do Ivor já era noite, então ele teve que aprender o circuito no escuro.

Pessoalmente, não creio que isto seja necessariamente uma desvantagem; podemos concentrar-nos mais, porque menos distrações são visíveis e vemos menos perigos potenciais. Às vezes, ao tentar reproduzir minhas velocidades noturnas à luz do dia, fico chocado ao ver o quão rápido as árvores e outros objetos sólidos avançam em direção ao carro e cheguei à conclusão de que a escuridão pode ajudar a manter sua mente longe dos perigos se você tem que ir muito rápido.

A Corrida

Nos treinos percebi algo que ficou na minha mente, pois destacaram os perigos peculiares do circuito de Sarthe e como poderíamos ter uma vantagem. Uma noite eu estava chegando muito rápido na curva do topo antes da descida para Maison Blanche, com meu carro equipado com freios a disco e com sua ajuda eu poderia deixar a frenagem o tão tarde quanto eu e o Jaguar aguentássemos. Ali percebi a vantagem que os novos freios iriam nos dar contra o poderio dos rivais, quando fazíamos uma curva lenta como Mulsanne, o Jaguar conseguia segurar o Mercedes na aceleração em primeira ou segunda marcha.

Quando largamos logo eu e Fangio nos destacamos do restante dos demais, a Mercedes de Fangio quando passava para a terceira velocidade de sua caixa de cinco marchas, ele conseguiu avançar, mas assim que cheguei na quarta marcha eu conseguia passar por ele. Nas curvas rápidas, o Mercedes, com a sua suspensão traseira independente, era claramente melhor que o Jaguar. Nas curvas lentas, não havia muita diferença, mas na parte de média – rápida velocidade como Maison Blanche, onde se chega a mais de 160 km/h, Fangio poderia abrir bastante. Suponho que nesta fase fiquei momentaneamente hipnotizado pela lenda da superioridade da Mercedes. Ali estava aquele bólido prateado, pilotado pelo melhor piloto do mundo, com injeção de combustível e válvula desmodrômica, suspensão complicada e freio a ar de outro mundo. Parecia natural que ele assumisse a liderança.

Então recobrei o juízo e pensei: “Droga, por que um carro alemão deveria vencer um carro britânico?” Como não havia ninguém por perto além de mim para impedir, comecei a trabalhar e alcancei-o novamente. A partir de então, lutamos roda a roda, volta após volta, numa luta total que colocou até mesmo o nosso famoso encontro em Reims 1953 na sombra.

Nesta fase eu estava dirigindo a toda velocidade e não tinha absolutamente nada de reserva. Fiquei me perguntando o que Fangio tinha na manga e perguntei a ele tempos depois, mas ele disse que simplesmente não poderia ter ido mais rápido. Fangio assumiu a liderança por três voltas, mas eu o alcancei novamente

No final da segunda hora, havia menos de um segundo entre nós depois de quase 400 quilômetros de automobilismo e tínhamos ultrapassado todos, exceto Castellotti, Maglioli, Kling e Levegh.

A essa altura eu já estava com uma pequena vantagem, mas logo chegou a hora de abastecer e trocar de piloto. Eu estava recebendo os sinais do pit que começou três voltas antes da hora marcada para entrar e sabia que desta vez deveria parar. Ultrapassei a Mercedes de Kling pouco antes da curva de Indianápolis, e o carro de Levegh logo após Maison Blanche onde começa a reta até os boxes. O único carro à minha frente agora era o Austin-Healey de Macklin e, quando cheguei ao lado, descobri se havia espaço para ultrapassá-lo e depois parar nos boxes. Na minha opinião, havia, então continuei e, à medida que os boxes se aproximavam, levantei a mão, pisei no freio e puxei. Eu estava quase lá, quando pelo canto do olho vi algo voando através do ar. Foi o Mercedes de Levegh que deu cambalhotas por cima da barreira de segurança, quicou uma vez e se desintegrou com a força da explosão de uma bomba.

Simultaneamente, o Austin-Healey de Macklin passou girando ao contrário e depois girou na minha frente em direção aos boxes. Tudo acabou em um ou dois segundos, mas ficou gravado em minha mente como um filme em câmera lenta. Havia três pessoas paradas em frente ao boxes, bem no caminho do carro verde avariado; um gendarme, um fotógrafo e um funcionário. Eu podia ver que o carro iria atropelá-los, e eles podiam ver, mas ficaram ali paralisados ​​de horror e o carro os atropelou.

Depois ricocheteou, girou novamente e acabou amassado no lado oposto da pista, onde Lance Macklin, milagrosamente ileso, saltou e correu para se proteger, enquanto um pneu girava preguiçosamente no meio da estrada.

Atordoado com o que tinha visto, deixei meu Jaguar passar pelo nosso pit e, como é proibido dar ré, parei e voltei a pista para ver se a equipe concordava que eu fizesse mais uma volta antes de entrar. fiz a volta extra e, doente de horror, repassei mentalmente a sequência de acontecimentos. O que aconteceu atrás de mim: E o que aconteceu com os espectadores!

Dirigindo mecanicamente, só queria sair do carro e fugir da pista. Mas, ao dar a volta em direção à Maison Blanche, pensei que meus olhos estivessem pregando peças, pois havia um carro destruído, em chamas, com uma grande coluna de fumaça preta e oleosa subindo para o céu. Este não poderia ser o Mercedes, era longe da reta dos boxes. E o que mais: só mais tarde soube que naqueles poucos momentos trágicos Dick Jacobs também havia caído em um dos novos M.G.A.s e ficou ferido, mas não estava em perigo.

De volta aos boxes, a pista estava cheia de escombros. Os destroços mutilados do Mercedes, sem motor e suspensão dianteira, jaziam em chamas no topo da barreira de terra e, além dela, misericordiosamente escondidos de nós pela densa nuvem de fumaça, as equipes de resgate já retiravam os mortos e feridos do recinto público. Eu só queria fugir disso e apagar a cena da minha mente. Saí cambaleando do pit dizendo que tinha encerrado a corrida e não iria entrar no carro novamente.

Suponho que fiquei perto da histeria por causa do choque, além da tensão nervosa concentrada das duas horas anteriores. Fui levado por Duncan Hamilton e sua esposa Angela, que me levaram para seu motorhome, me sentaram e me colocaram uma bebida na mão enquanto Duncan falava comigo como um pai, tentando me acalmar.

O chefe da equipe Jaguar era Lofty England, quando ele viu que todos os carros da equipe estavam reabastecidos, veio ver como eu estava e eu disse novamente que não iria pilotar novamente, mas Lofty disse com bastante firmeza: “Ah, sim, você vai! Você vai lá fora e terminar a corrida. É a única coisa que você pode fazer! Durante aquelas horas terríveis ele foi uma torre de força.

Enquanto as pessoas iam e voltavam consultando precedentes e debatendo sobre o que deveria ser feito, Lofty via a situação de forma bastante clara e simples.

Nada que ele pudesse dizer ou fazer alteraria, no mínimo grau, as consequências do acidente. Ele veio para Le Mans para vencer uma corrida automobilística e, enquanto a corrida continuasse, era seu trabalho vencê-la.

No próximo dia 07 de setembro a segunda parte da coluna e como Mike Hawthorn, voltou a sentar no carro para terminar essa fatídica prova.

Até Lá

Mário

Mário Salustiano
Mário Salustiano
Entusiasta de automobilismo desde 1972, possui especial interesse pelas histórias pessoais e como os pilotos desenvolvem suas carreiras. Gosta de paralelos entre a F1 e o cotidiano.

2 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    Aproveitando a dica … campeões mundiais da Formula 1 como o Mike Hawthorn ou tipo Phill Hill são quase nada lembrados por quem faz a Formula 1 existir … no caso do Mike … o primeiro piloto ingles campeão da Formula 1

    Fernando Marques

  2. Fernando Marques disse:

    Mario,

    mais uma vez voce dando aquele show de bola ….

    A história da maior tragédia do automobilismo mundial contada por Mike Hawthorn, por muitos considerado o culpado pelo acidente que resultou numa cena absurdamente gigantesca e dezenas de vitimas fatais, sinceramente jamais esperava ler … pois até nem sabia da existência da biografia dele …
    Apesar da tragédia, penso que um dia ela deveria ser contada aqui no GP Total … e nada melhor que com as palavras do próprio Mike Hawthorn

    que venha a parte 2

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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