Quantos duelos cabem em 5 horas?

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Em 1932 o Campeonato Europeu, categoria Grand Prix, equivalia à Fórmula 1 que conhecemos, criada após a 2a. Guerra Mundial.

Era composto por apenas 3 Grand Prix: Itália, França e Alemanha.

Claro que essas provas tinham o mais alto prestígio, mas havia outras de calibre equivalente, como a Targa Florio e Monaco.

Todas disputadas pelo que havia de melhor no automobilismo de alta performance: equipes, carros, pilotos.

Monza, com o circuito de 10km, que incluía o trecho oval, de 4,5km, foi escalada para sediar o GP da Italia desse ano.

O público queria alta velocidade e os organizadores trataram de satisfazer essa vontade.

Portanto pilotos e carros teriam que percorrer essa distância, em altíssima velocidade, durante 5 horas, que era o regulamento vigente.

Neste não havia restrições de peso nem de capacidade cúbica do motor e troca de pilotos era permitida.

Novamente seria uma oportunidade para o público ver as 3 principais equipes da época em ação.

Ernesto Maserati, capo da Officine A. Maserati após o falecimento de seu irmão Alfiero, apostou novamente em Luigi Fagioli e a poderosa V5, de 16 cilindros 5000cc, que já tinha vencido o GP de Roma nesse circuito pouco tempo antes.

Com ela Renée Dreyfus tinha assinalado a volta mais rápida em Avus, circuito alemão de altíssima velocidade. Amedeo Ruggeri competiria com a 8C de 2800cc.

A Alfa Romeo decidiu estrear seu novo modelo de 8 cilindros, 2.650cc, uma reação ao aparecimento da V5. Duas unidades apenas, a cargo de Tazio Nuvolari e Giuseppe Campari. Mario Umberto Borzacchini e o já respeitado alemão Rudolf Caracciola conduziriam os habituais 2.300cc Monza, tendo Attilio Marinoni como piloto reserva.

Automobiles Ettore Bugatti não tinha ao menos intenção de ficar atrás e trouxe suas duas novas T54, de 5.000cc, que tinham impressionado por sua velocidade em Avus. Naturalmente seriam conduzidas pela dupla de ases, Achille Varzi e Louis Chiron. O talentoso Albert Divo conduziria a costumeira T51 e Guy Bouriat seria o piloto reserva.

Mas havia um forte esquadrão de pilotos inscritos por sua própria conta, como Dreyfus e Marcel Lehoux, ambos com Bugatti.

A Scuderia Ferrari inscreveu 2 Alfa Monza para Pietro Ghersi e Eugenio Siena, com o Conde Antonio Brivio na reserva.

O Conde Luigi Castelbarco inscreveu sua Maserati de 2500cc, assim como Luigi Premoli.

Às 9:00 da manhã, um belíssimo dia ensolarado, os carros foram levados ao grid.

A primeira fila era composta por Borzacchini, Lehoux, Castelbarco.

A segunda era fortíssima, composta por Nuvolari, Chiron e Fagioli.

A seguir vinham Campari, Varzi e Premoli.

Caracciola, Dreyfus e Ghersi.

Divo, Siena e Ruggeri fechavam o conjunto.

A largada foi dada às 9:42, seguida pelo costumeiro rugido ensurdecedor.

3 minutos e 34 segundos depois é Nuvolari quem aparece primeiro, com Chiron em sua cola e Campari a um carro de distância.

Todos andando no limite.

Na segunda volta Tazio continua na frente, agora assediado pelo companheiro de equipe, com Chiron fechando o pelotão dianteiro. Borzacchini, Fagioli, Varzi, Lehoux, Dreyfus, Ruggeri e Ghersi se enfileiravam atrás.

Antes de completar essa volta Chiron passa os dois e Fagioli faz o mesmo com Borzacchini.

Varzi, Castelbarco e Premoli vão os pits, assim como Rudolf. Só que o magneto de sua Alfa demora a funcionar e o alemão perde gigantescos 14 minutos, resultando em 5 voltas de atraso para seus competidores diretos.

Lá na frente, disposto a fazer a festa na casa do adversário, Chiron bate o recorde da volta com 3’24” segundos, média de 176,12 km/h!

Na quinta volta Nuvolari continuava em segundo, na cola do monegasco, agora seguido por Fagioli a 2 segundos, Varzi a 8”, Campari a 9″.

Aos poucos o pelotão dianteiro vai ganhando mais membros e a batalha se tornando mais feroz.

Luigi Fagioli assume a ponta com 34’48”6 de prova, 10a. volta, média de 172,364km/h. Seguido por Nuvolari, agora com Varzi, Chiron, Borzacchini, Ruggeri, Dreyfus e Brivio.

Varzi tinha estado 18” atrás de Chiron. Embora não se possa contestar a qualidade de Achille e sua costumeira – e inteligente – estratégia conservadora no início das provas a ultrapassagem era improvável. Teria acontecido alguma coisa com Louis Chiron? Possivelmente uma soma de fatores.

Estava muito quente e seco. Embora muito veloz a T54 deixava bastante a dever no quesito dirigibilidade, o que pode ter deixado o piloto cansado antes do tempo, lembrando que ele tinha tido um acidente na prova de Monaco. Também pode ter ocorrido um problema na linha de alimentação de combustível.

Mais 5 voltas e a grande Maserati V5 se mantém na ponta, virando em 172.855 km/h..

Nuvolari se mantém em segundo, 3”2 atrás. Campari está a 7”, com Varzi pouco menos de 2” atrás. O próximo é Chiron, a quase 9” de atraso, seguido por Ruggeri, Borzacchini, Dreyfus, Ghersi, Divo, Lehoux, Premoli.

Na volta 19 Campari dá um bote certeiro e ultrapassa o companheiro de equipe. Lehoux é obrigado a se retirar na volta seguinte, com problemas de motor. Castelbarco roda e bate, mas sem maiores consequências além do inevitável abandono.

Nessa 20a. volta Fagioli aumenta ligeiramente o ritmo, virando em 173,435 km/h.

Campari permanece em segundo, Nuvolari em terceiro, Varzi em quarto, Chiron em quinto. Ruggeri cai para 8º, atrás de Borzacchini e Dreyfus.

Na volta 23, drama no box da Maserati.

Luigi vem trocar pneus e reabastecer e essas operações tomam 3’7”, fazendo com que ele volte para a pista em 8º.

Campari também para nessa volta, para trocar as 4 rodas, combustível e óleo, gastando 1’29”.

E assim Tazio volta à ponta na volta 25, com pouco menos de 1’ de vantagem sobre Varzi e Chiron, com Borzacchini e Campari mais de 1’ atrás.

É a vez de Nuvolari parar nos boxes e a equipe o devolve após 1’36”.

Na volta seguinte Borzacchini se preparava para ultrapassar um retardatário quando uma pequena pedra lançada pelo pneu desse competidor o atinge no rosto. Convém lembrar que o capacete da época se resumia a uma touca de pano combinada com goggles.

Mesmo com dores e sangue pingando, Borzacchini não para e vai se aguentando até chegar aos boxes. Enquanto é atendido pelos médicos Marinoni assume seu lugar.

Também convém lembrar que os pilotos reservas da época efetivamente tinham que estar a postos sempre, pois as chances de surgir emergências eram comuns.

E assim Varzi assume a ponta, seguido por Chiron, Nuvolari, Campari, Dreyfus, Ruggeri, Fagioli.

Aí se nota que as Bugatti de 5,0L não eram mais rápidas que a Alfa 2650 e a Maserati V5 nas retas. Pior, sensivelmente inferiores nas curvas. Somando com a pilotagem cansativa, devido à má dirigibilidade, o preço poderia estar alto demais.

Mas havia outros problemas. Varzi parou nessa volta 26 e abandonou, com problemas insanáveis na caixa de câmbio. Chiron parou na volta seguinte, com problemas no ombro.

Mas também havia o problema na linha de abastecimento de combustível, devido ao calor.

Então assim que isso foi resolvido no carro do monegasco Achille assume seu lugar.

Brivio toma o lugar de Ghersi quando este faz sua parada.

Bouriat faz o mesmo com o carro de Divo.

Após 30 voltas, 1h46m15.2, Nuvolari lidera, com um ritmo mais leve, 169,433 km/h, seguido por Campari, a pouco menos de 15’.

Dreyfus, com carro nitidamente inferior, ganha o terceiro posto graças a um ritmo constante e ausência de problemas.

Fagioli, recuperando a longa parada de box, agora está em quarto, seguido por Marinoni, Siena, Bouriat, Ruggeri, Brivio, Caracciola e Premoli.

Na volta 39 acaba de vez a esperança da Bugatti. Um bloqueio na problemática linha de combustível gera travamento de pistão e Varzi não tem escolha a não ser rumar, vagarosamente, para os boxes.

Nuvolari e Campari estão folgados na frente na volta seguinte.

Fagioli vem diminuindo a diferença, mas lentamente.

Nesse momento Tazio tem 16’ de vantagem sobre o companheiro de equipe. Talvez Campari tenha se cansado um pouco, não conseguindo manter o ritmo do líder, porque após 15 voltas a diferença tinha aumentado para 1’11”.

A média do mantuano está em 169.838 km/h, praticamente a mesma de 10 voltas antes.

Fagioli está a pouco mais de 30” atrás de Campari.

Marinoni vem a quase 4’ deste, Dreyfus a mais 10”, seguido por Siena. Divo, Ghersi, Caracciola, Ruggeri e Premoli, que estão bem mais atrasados.

Mais 5 voltas, a diferença entre Nuvolari e Campari se mantém, mas Fagioli fica quase 3’ atrás.

Na volta 50, azar de um, sorte de outro. Campari faz sua parada prevista nos boxes, mas o motor se recusa a pegar. Os mecânicos tentam fazer pegar no tranco, mas um fiscal manda voltar para os boxes. Isso leva mais de 8 angustiantes minutos.

Para fazer o mesmo, abastecer e trocar pneus, Tazio perde apenas 1’50”.

Com isso Fagioli, imprimindo um ritmo fortíssimo, assume a ponta.

O provável cenário para o final se delineia: um duelo entre a poderosa e velocíssima Maserati 16 cilindros e a nova Alfa pilotada por Nuvolari.

Mas no meio do pelotão muita coisa interessante iria acontecer.

Bouriat, pilotando a Bugatti de Divo, faz sua parada normal para troca de pneus e abastecimento. Surpresa! Chiron, recuperado, assume o volante.

Não é o único. Borzacchini também quer voltar, mesmo contraordens dos médicos.

Marinoni para e ele assume, para retornar na volta seguinte. Sai do carro cambaleando e desmaia. É levado para a ambulância que acompanha a prova, mas volta a si antes que ela parta.  Quem assume o volante é Caracciola, cujo carro conviveu com problemas no magneto até ter que abandonar.

Na volta 61 Fagioli vem fazer sua terceira parada. Mais uma vez ela se mostra demasiado demorada. Após beber água e assistir à troca de pneus, abastecimento de gasolina, óleo e água, ele derrama o conteúdo da garrafa sobre a cabeça, sacode para eliminar o excesso e vai para dentro dos boxes. Ernesto Maserati toma seu lugar.

Na volta 70 a ordem é Nuvolari, pouco menos de 2’ à frente de Ernesto, Dreyfus 5’12 atrás, seguido por Caracciola e Campari, ambos na faixa de 6’ de atraso.

Na volta seguinte começa o espetáculo de Fagioli.

Mais descansado, ele reassume a V5 em uma missão aparentemente impossível.

Começa descontando a volta que Dreyfus tem de vantagem. Depois passa Chiron.

Na volta 74 alcança Caracciola.

Ele vira em 3’25”, 3’23”, 3’22”, 3’21”, 3’19″4 em sequência, está na média de 180,54 km/h.

Novo recorde, 3 segundos mais veloz que a melhor volta do mantuano.

Que estava guiando sem parar, há mais de 4 horas. E já contava 40 anos de idade.

Fagioli se aproxima de Nuvolari. Força a ultrapassagem e Tazio não esboça reação.

Não era preciso, estava uma volta à frente.

Mas o público, esse fica em êxtase, acompanhando a perseguição implacável e percebendo que o eventual cansaço do principal piloto da Alfa Romeo poderia se impor.

Lá atrás Caracciola consegue passar Dreyfus. Ambos são ultrapassados por Fagioli, que assume o segundo posto na volta 77. A corrida termina na volta 83. Após cinco horas e tantos atrasos nos boxes, Fagioli termina a meros 2 minutos e meio atrás da Alfa estreante.

Nuvolari é merecidamente carregado em triunfo, tinha vencido Monaco, Targa Florio e agora Monza, no espaço de dois meses.

Marcas italianas tinham feito 1º, 2º, 3º e 4º lugares, com 6 pilotos italianos a bordo de seus carros, uma vez que Campari chegou atrás da Alfa conduzida por Borzacchini/Marinoni/ Caracciola.

Nada mal para um país com dificuldades econômicas demonstrar que conseguia produzir talento, tecnologia e espírito esportivo no mais alto nível.

Não se pode deixar de ressaltar a bravura de Chiron e Borzacchini, que mesmo em más condições físicas ultrapassaram os limites do cumprimento do dever.

Era um tempo em que tecnologia, paixão e heroísmo andavam juntos e conviviam perfeitamente.

Até a próxima

Carlos Chiesa

Carlos Chiesa
Carlos Chiesa
Publicitário, criou campanhas para VW, Ford e Fiat. Ganhou inúmeros prêmios nessa atividade, inclusive 2 Grand Prix. Acompanha F1 desde os primeiros sucessos do Emerson Fittipaldi.

4 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    Como sempre o GEPETO nos brinda com uma bela história.
    Sensacional

    Fernando marques
    Niterói RJ

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