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Schumacher conseguiu o que Prost e Alonso não conseguiram, e o que Vettel tenta agora repetir: mas quanto disso se deveu somente a Schumy?

Dentre as muitas correntes filosóficas, duas parecem se aplicar a diferentes temas, épocas e locais: a holística e a reducionista. Explicando a grosso modo, a holística é aquela que nunca vai tomar um fato como algo isolado, independente: ela vai analisar todo o contexto que antecede o acontecimento, e todos os meios que possibilitaram sua ocorrência. Já a reducionista prefere concentrar-se no fato, vê-lo como uma parte, e não como o todo. Por exemplo, se aplicadas à medicina, a reducionista combateria os sintomas; já a holística cuidaria destes mas, sobretudo, buscaria o tratamento das causas.

Um ambiente onde é muito comum — mesmo que sequer saibam aderir a tais correntes — ver a holística e o reducionismo aplicados é a política: reducionistas enxergam conquistas do presidente X como méritos exclusivos deste e de sua programática, bradando incessantemente que “nunca antes na história desse país…“; holistas veriam esses avanços como, também, contribuições do político, mas entenderiam que o momento foi propício, e que seu(s) antecessor(es) foram fundamentais. De igual modo, adeptos do reducionismo atribuiriam à presidente Y total responsabilidade pela famigerada crise, enquanto os da holística entenderiam haver diversos fatores, internos e externos, contribuindo para que tal período se sucedesse.

Nos esportes, a holística vai enxergar conquistas como a confluência de uma série de possibilidades materiais e humanas. Um exemplo claro: na festa do sexto título brasileiro do Corinthians, o ex-jogador Ronaldo esteve em campo para, também, levantar o troféu, mesmo que tenha se aposentado havia cinco anos: “Me sinto parte dessa conquista porque comecei essa reformulação (…) eu comecei essa mudança de status do Corinthians lá atrás“. Ainda que tenha individualizado, Ronaldo acerta ao dizer que o clube é hoje talvez o maior do país porque passou por um longo processo, no qual ele foi peça-chave.

O reducionismo vai aparecer geralmente nas derrotas ou insucessos: Messi, e não a Seleção Argentina, perdeu a Copa do Mundo; o Brasil foi eliminado porque Roberto Carlos ajeitava a meia, Zico perdeu o pênalti ou Barbosa pulou atrasado. Mas também vai aparecer nas vitórias e glórias: Romário, e não a Seleção Brasileira, ganhou a Copa de 1994 e o Chicago Bulls nunca mais foi campeão “porque Jordan parou”. Na Fórmula 1, o maior exemplo reducionista acontece na relação Schumacher-Ferrari: especialmente para comparar o alemão a Prost ou Alonso, diz-se que “Schumy conseguiu erguer a Ferrari; eles não”. Para Vettel, aquele que agora tenta repetir o filme, resta o benefício da dúvida.

Ignora-se tudo: o contexto, o comando, os investimentos, a permissividade do regulamento, as mudanças da época, a transição de gerações. Foca-se só e unicamente no talento — este, inquestionável — de Schumacher.

O professor e o caminhão

A primeira grande crise da Ferrari foi aquela que sucedeu o título de John Surtees, em 1964: até a chegada de Niki Lauda e Montezemolo, foram temporadas sofríveis, geralmente tendo de “correr atrás” das inovações tecnológicas que as equipes rivais conseguiam dominar. Niki Lauda ajudou a equipe voltar ao topo e dominar a F1 entre 1975 e 77, mas sairia do time antes de a temporada terminar, quando de seu segundo mundial pela Scuderia: o austríaco não suportava mais o modus operandi, a cabeça dura dos italianos.

Alain Prost chegou à Ferrari em 1990, depois de já ter projetado a vaga na equipe italiana com todo o imbróglio na McLaren um ano antes. O francês tinha a missão de repetir Niki Lauda e levar a equipe italiana ao título mundial que não vinha há dez anos – e junto com Mansell, projetava-se a retomada do campeonato de construtores (o último viera em 1983).

O francês já tinha uma reputação altíssima na Fórmula 1: 1990 seria sua 11ª temporada completa, e ele contava com 35 anos e três mundiais, além do recorde de vitórias da categoria.

Prost fora companheiro de equipe de alguns dos melhores de todos os tempos, batendo todos eles em pelo menos um campeonato. A Ferrari, muito além do jejum, vivia um período dificílimo: dede o título de 1979, as temporadas se alternavam entre bons desempenhos (1982, 85, 87) e outros terríveis (1980, 86).

No segundo semestre de 1988, a morte de Il Comendatore. Prost chega a uma Ferrari que aparentava estar em reformulação. Aparentava: Cesare Fiorio, que vinha de cargos na FIAT, na Juventus e na Alfa Romeo, assumiu o controle da parte esportiva da Ferrari em 1989. Era também o ano da volta dos motores aspirados, e a Ferrari introduzia o câmbio semi-automático na F1.  Por fim, a chegada de Prost coincidia com a saída de John Barnard: o diretor técnico se mudava para a Benetton.

Apesar das três vitórias (Brasil, Hungria e Portugal), ficava claro que em desempenho a equipe ainda estava longe da McLaren. Mas ao longo da temporada 90, especialmente a partir da metade do ano, Prost consegue desenvolver o carro, quase chegando ao título. Mas o mundial ficou com Ayrton Senna, com mais uma batida entre os dois.

A Ferrari seguia confiante, e no período de testes foi chamada “campeã do inverno”. Porém, 91 seria uma temporada muito frustrante: nenhuma vitória, e uma abismal diferença para a McLaren e, principalmente, para a Williams. Cesare Fiorio foi demitido ainda no GP de Mônaco, e Alain sairia no final do ano, nem mesmo correndo o GP da Austrália: Prost declara que o carro da equipe “parecia um caminhão”.

O companheiro de equipe de Prost era Jean Alesi, jovem promessa do automobilismo e com sangue siciliano nas veias. Pareceu uma união entre o útil e o agradável: afinal, quem precisaria de um francês que já havia conquistado tudo, já tinha 36 anos e ainda falava mal “da gente”?

O “Dream Team”

Após a saída de Prost, a Ferrari viveu em 1992 o ano mais obscuro de TODA A SUA HISTÓRIA: não marcou um pódio sequer, e terminou o mundial de construtores na quarta colocação, SETENTA pontos atrás da Benetton, a terceira. 1993 marcou o retorno de Gerhard Berger, e a equipe voltou aos pódios (foram dois de Alesi, um de Berger), mas ainda era pouco.

Na segunda metade do ano, a Ferrari anuncia duas importantíssimas contratações nos bastidores: o projetista John Barnard retornava à equipe depois de quatro anos. Mas o ponto alto seria a chegada de um francês, dono de um grande currículo como diretor esportivo nos ralis. Seu nome? Jean Todt. Palavras de Bernie Ecclestone, na época: “Todt é o homem certo para recolocar a Ferrari na trilha das vitórias”.

Berger, em seu livro “Na Reta de Chegada”, fala sobre a vinda do francês da seguinte maneira: “Todt tinha um ceticismo muito saudável em relação a tudo o que acontecia na Ferrari e passou a se dedicar com afinco a compreender a equipe. (…) Hoje eu sei que, apesar de a ressurreição da Ferrari ter demorado muito mais que se pudesse prever, ela certamente começou no dia em que Jean Todt chegou”.

De fato, o espírito para 1994 estava completamente renovado: após as proibições da eletrônica, uma parceria — oficialmente, uma “consultoria” — com a Honda traz um motor ultra potente, e faz a equipe voltar ao seu protagonismo, inda que sem a consistência de Williams e Benetton: a primeira vitória depois de QUATRO anos acontece no GP da Alemanha, com Berger fazendo o v12 roncar mais alto do que nunca.

Além da vitória, foram 10 pódios e 3 pole-positions, e 71 pontos no Mundial de Construtores: uma melhora imensurável: em 1993 foram 0 vitória, 3 pódios, 0 pole e 28 pontos. Com o detalhe: já havia sido BEM melhor que em 1992. Em 1995, a equipe se estabiliza: mais uma vitória (agora com Alesi), uma pole (e outras 5 largadas na primeira fila), onze pódios e 73 pontos no mundial de construtores.

Segundo se conta, o contrato de Schumacher com a Ferrari já havia sido assinado no INÍCIO de 1995, o anúncio acontecendo no final da temporada. Michael testa o carro e o acha excelente. Palavras do alemão: “me surpreendo que a Ferrari não tenha vencido mais corridas em 1995”. Bravata? De qualquer forma, Berger confessa no livro que ficou constrangido e que seu moral estava cada vez mais baixo no circuito.

A chegada de Schumacher movimentou a dança das cadeiras: a dupla da Ferrari virou a dupla da Benetton. Para companheiro de Schumacher, o promissor (?) Eddie Irvine. Em 1996, Schumacher faz milagre: vence três corridas e conquista algumas poles dignas dos melhores dias de Ayrton Senna.

Mas a Ferrari era carro de um piloto só, e o desempenho geral da equipe não evolui com relação às temporadas anteriores: na frieza dos números, até cai um pouco: são 70 pontos e 9 pódios no geral, apesar da segunda colocação  no mundial de construtores.

Ao final da temporada, Schumacher faria uma série de exigências à alta cúpula da Ferrari, em perfeito acordo com Jean Todt: John Barnard daria lugar ao sul-africano Rory Byrne e o inglês Ross Brawn chegava para controlar as estratégias de corridas. Era, assim, formado o “Dream Team da Fórmula 1”.

Com tantos mestres – e nenhum italiano, que me perdoem meus antepassados – comandando a equipe, a preferência de pneus da Bridgestone, a quantidade de testes ilimitada (Schumacher muitas vezes dormia na pista de Fiorano), o orçamento sem teto E UM PILOTO FENOMENAL, em mais três anos o mundial chegaria. E se estabeleceria um domínio sem precedentes na história do esporte.

O Samurai

O ano era 2009. Nas 10 temporadas anteriores, a Ferrari vencera nada menos que 6 mundiais de pilotos (5 com Shumacher, 1 com Räikkönen – também com Jean Todt no comando) e 8 de construtores. Era o momento perfeito para qualquer piloto com altas pretensões chegar lá, correto?

Errado. As mudanças de regulamento, mais uma vez, jogaram a Ferrari passos atrás dos adversários. No ano do “milagre da Brawn” (o mesmo Ross Brawn dos 5 títulos de Schumacher), a Ferrari teve um dos piores inícios de temporada de sua história: só pontuaria no quarto GP.

A desorganização vista em décadas anteriores voltava junto com a saída de cada um dos integrantes do Dream Team (Schumacher, Brawn e Byrne saíram em 2006, Todt em 2007) e o regresso dos italianos (Stefano Domenicalli passava a ser chefe). Fernando Alonso chegava para ser o novo Schumy. Coincidências não faltavam, desde a relação com Briatore ao número de títulos e vitórias, passando pela idade.

A estreia foi perfeita — com vitória, fato que só acontecera três vezes na história da Scuderia — mas não houve sequência: somente no segundo semestre as vitórias voltariam, e isso se deveu muito mais ao talento do espanhol do que à qualidade do desenvolvimento: Alonso, como poucos na história, sabe maximizar os pontos quando os adversários diretos sofrem com problemas: foram 5 vitórias ao todo, o título escapando num erro crasso de estratégia na última corrida.

Mas desde o ano anterior a Fórmula 1 vivia um domínio: Red Bull-Renault, com o mago Adrian Newey, estava anos-luz à frente de todas as equipes.

Em 2011, Alonso vence apenas uma corrida, num ano em que a McLaren também se mostrava superior à Ferrari. 2012 apresenta outra mudança de regulamento, originando os “Bicos degrau”. O filme de 2010 se repete quase que ipsis litteris: Vettel tem quebras importantes, e Alonso leva a Ferrari a vitórias tão improváveis quanto incontestáveis (Malásia e Valência, dois clássicos). O título escapa, outra vez, na última corrida, mas desta vez o espanhol era franco atirador.

2013 marca o auge da saga Carlos Reutemann de Fernando Alonso (entenda aqui): novamente um bom começo sucumbe à estagnação. A diferença, desta vez, foi que a Red Bull não erraria mais. Alonso jogou a toalha e escancarou toda sua insatisfação no GP da Bélgica: depois de subir de 9º para 2º (sem quebras!), Alonso não comemora, cruzando a linha de chegada do lado oposto aos boxes — e os mecânicos mostram a placa indicando sua distância (11s) para o vencedor.

2014 é outro 2009, outro 1992: a Ferrari volta ao limbo, recomeça do zero. Alonso não chama o carro de caminhão, mas nem precisava: no Bahrein, o espanhol COMEMORA efusivamente a nona colocação.

Baby Schumy

Vettel chega à Ferrari em reconstrução: demissões e saídas decisivas na equipe: Domenicalli e Montezemolo deixam o time ao longo de 2014, e estrangeiros voltam a ter papeis importantes na Scuderia. Desse modo, a missão de Vettel tem melhores possibilidades de ser cumprida do que aquelas de Prost e Alonso.

No entanto, Vettel é indiretamente responsável pelas dificuldades na Ferrari: foi o domínio arrasador da Red Bull (especialmente em 2013, com nove vitórias seguidas) que motivou mais regras esdrúxulas a fim de “equilibrar forças”, resultando em mais uma hegemonia alemã: da equipe Mercedes.

Assim, a chance de algo como o que Schumacher protagonizou voltar a acontecer é quase impossível, por conta do congelamento de motores, da estapafúrdia exigência de diferentes pneus e, principalmente, da terrível restrição de testes.

Vettel, Alonso e Prost são tão capazes quanto Schumacher, e poderiam ter realizado o mesmo que o destino agraciou a Michael. Porém, nenhum deles conseguiu reunir os fatores internos e externos necessários para tal.

A holística indica que Schumacher foi o homem certo, na hora certa, no lugar certo. O reducionismo cita apenas o primeiro fator.

Abraços a todos.

Marcel Pilatti
Marcel Pilatti
Chegou a cursar jornalismo, mas é formado em Letras. Sua primeira lembrança na F1 é o GP do Japão de 1990.

2 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    Marcel,

    que belo texto e belo resumo do que foi foi e é a Ferrari.
    Mas me chamou atenção para dois pecados um não dito e outro dito no texto. Um é o fato que o lado passional da Ferrari tem sempre que ser lembrada … tudo na Ferrari toma dimensões infinitamente maiores … o fanatismo que tanto engradece a equipe também em muito atrapalha … o outro aspecto é que o Corinthians nunca foi e será o maior clube do Brasil. Nem com Ronaldo Fenômeno, Lembre-se Flamengo é sempre Flamengo … hehehehehe
    No mais concordo com Mauro Santana em relação ao Vettel.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  2. Mauro Santana disse:

    Belíssimo texto Marcel!!

    Então, os tempos são outros, como muito bem foi apontado no texto.

    Na minha opinião, acho que o Vettel pode conquistar um título pela Ferrari, não vai ser fácil e também não será a curto prazo.

    Mas como ele é novo, e se tiver paciência, pode conquistar um título, basta ter acima de tudo, sorte, pois na F1 atual, não basta ter só talento, tem que ter sorte de estar no melhor carro, no momento certo.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

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