Três vezes não, parte 2

Soberania alemã
20/07/2014
A pausa
25/07/2014

O que aconteceu logo após o desfecho do campeonato de 76: antes de seus adversários na pista, ele precisou vencer o "Não" mental que lhe foi imposto pela Ferrari.

*Relembre a primeira parte dessa história clicando aqui.

Nos momentos finais do filme Rush, vemos duas situações bem emblemáticas. Na primeira, Niki Lauda deixa o autódromo de Fuji após perder o campeonato para James Hunt e fica olhando o rival comemorando a conquista do título do campeonato de pilotos de 1976. Sem dúvida um momento doloroso para o austríaco, mas ele sempre afirmou não ter ser arrependido da decisão que tomou. A segunda situação vem na cena em que num suposto encontro entre Lauda e Hunt, num aeroporto, o austríaco fala da importância de manter o foco na preparação para o campeonato seguinte.

O campeonato de 1976 terminou no Japão em 24 de outubro e o campeonato seguinte começou na Argentina, já em 9 de janeiro. Nos 75 dias que separam essas datas, ambos assistem não apenas as equipes se preparando para um novo campeonato, como também testemunham o clima de guerra que ocorre nos bastidores pelo controle de contratos com os organizadores das provas. Essa história é muito bem contada pelo Manuel Blanco na coluna “A trindade do sucesso”.

Enquanto Lauda se prepara para disputar o campeonato, numa fase ainda difícil em função de seu acidente, um problema nas pálpebras sendo a mais incômoda das sequelas, ele foca todos os seus esforços para voltar a velha forma ainda no final de 1976.

Após a confirmação da Ferrari de que Lauda e Carlos Reutemann serão seus dois pilotos, vem a surpresa: Lauda é afastado dos principais testes de pré-temporada, que ficam a cargo de Reutemann. Na sequência, o austríaco é comunicado que vai iniciar o ano como segundo piloto. Inicia-se, assim, uma tensão na relação dele com a equipe, ficando claro para ele que Enzo Ferrari não aceitou a sua decisão de abandonar o GP no Japão e usa da artimanha da retaliação como forma de miná-lo dentro da equipe.

Sobre essa fase, o relato de Lauda foi o seguinte em sua biografia:

Em retrocesso, eu vejo a perda do título de 76 diferente de como eu via na época, apesar de eu não ter me cobrado isso. SE eu tivesse estado menos tenso em momentos decisivos, SE eu tivesse ido com calma e conquistado os dois pontos que precisava para o título, eu teria hoje 4 e não 3 títulos nas minhas costas. Mas, pra ser sincero, pouco me importa. Não tenho arrependimentos nesse setor. E a Ferrari não precisava ter se sentido traída pela perda do campeonato. A culpa foi deles da decisão ter ficado para a última corrida em Fuji: tivemos problemas em Paul Ricard quando eu estava bem e liderando, uma suspensão quebrada no Canadá. Em Monza, tudo que era necessário era uma sinalização de contrato para 77. Eu coloquei as cartas na mesa:

‘E o que fazemos sobre isso? Esquecemos? Acabamos tudo’

‘Como assim?’ perguntou Ferrari

‘Por que assim posso pilotar pela McLaren’

Ele foi pego de surpresa. O que eu faria pilotando pela McLaren? Eles me fizeram uma oferta, eu disse, e tudo que tinha dizer era sim. Não havia um pingo de verdade nisso, é claro. Eu apenas decidi no calor do momento levar a situação assim. Eu joguei McLaren porque eles eram o melhor time nessa época no nível da Ferrari.

Me retirei da sala. Algumas ilustres presenças foram reunidas, e uma longa discussão se seguiu. Então fui chamado de volta. Eu poderia seguir como piloto, mas Reutemann seria o n° 1 do time. Para mim isso era besteira, porque nós dois iríamos pilotar o mesmo carro. Quem se sobressaísse como n° 1 ou n° 2 seria aparente – isso dependeria automaticamente de nossas respectivas performances e eu não tinha preocupações nenhuma nesse quesito.”

Na abertura da temporada em Buenos Aires, algumas surpresas e mudanças. A primeira delas é o novo carro da Lotus, o modelo 78, com o conceito aerodinâmico de asa que causa uma revolução que marcou os anos seguintes. A prova é disputada sob intenso calor e é vencida pelo sul africano Jody Scheckter com a equipe estreante Wolf. Na Ferrari, enquanto Reutemann termina em terceiro, Lauda abandona.

A corrida seguinte é em Interlagos. Reutemann trabalha bem as adversidades da prova e consegue sua primeira vitória pelo time italiano. Lauda termina a prova em terceiro, muito mais em consequência dos inúmeros abandonos que marcaram esse GP – apenas sete carros terminam a prova – chegando 1 minuto e 45 segundos atrás do argentino.

httpv://youtu.be/w3WNCQBIbK4
GP do Brasil de 1977, na íntegra

Naquela altura, Reutemann assumia a liderança do mundial de pilotos e muitos começavam as suas apostas que a carreira de Lauda estava acabada.

Niki tinha sofrido o “Não” emocional no inicio da carreira, quando praticamente rompe laços com a família, que se nega a ajudá-lo a ser piloto.  Sofreu então seu quase-fatal acidente em Nürburgring , mas numa atitude de dizer “Não” à dor física, se recupera e volta as pistas.

Agora o desafio de Lauda era enfrentar a rejeição que estava sofrendo da cúpula da Ferrari. O mundo já começava a olhá-lo de forma piedosa, aguardando a sua desistência de tudo aquilo. “Seria Lauda capaz de suportar tamanha pressão?” muitos se perguntavam

Quando a fórmula 1 chega à África do Sul para disputar sua terceira prova , muitos dos céticos já apostavam num novo fracasso de Lauda frente a Reutemann. E é nessa prova que o austríaco diz “Não” a dor mental. De fato, ele já vinha se preparando muito para isso e o que passou despercebido para a maioria era exatamente a capacidade que ele tinha de enfrentar adversidades, sempre colocando os pontos em perspectivas e planejando cada passo para conseguir superar essas barreiras.

Numa corrida marcada pela tragédia do acidente que vitimou o inglês Tom Pryce, após 7 meses e 15 dias em relação a sua ultima vitória no GP da Grã-Bretanha,  Niki Lauda voltava a vencer na fórmula 1. Nessa corrida foi a vez de Reutemann chegar fora da zona de pontuação e, com esse resultado, Lauda empata com o colega de equipe na tabela do campeonato.

A partir da prova seguinte, em Long Beach – vencida finalmente por Mario Andretti e sua Lotus -, Lauda põe em prática a tática da regularidade para marcar o máximo de pontos que o carro permite. O modelo 312T2 já não é o carro mais veloz do grid, papel esse assumido pelo Lotus 78, que naquele ano se mostrou tão frágil quanto rápido.

Com muita astúcia a cada prova, o objetivo de Lauda de minar Carlos Reutemann dentro da Ferrari vai se concretizando.

Novamente de sua biografia e em suas palavras, ele descreve essa atitude:

A temporada de 1977 foi dura. Minha prioridade era colocar Reutemann em seu lugar e assegurar a posição n°1 no time. Já na terceira corrida da temporada – GP da África do Sul – isso já havia sido mais ou menos cumprido, e eu pude focar no progresso técnico. Mas a Ferrari já não era o carro mais rápido com o passar dos anos: nós conseguimos apenas duas pole positions na temporada inteira. Os maiores rivais nesse departamento eram Hunt na McLaren, Andretti na Lotus e Scheckter na Wolf”. 

A primeira metade da temporada é alcançada no GP da França e a avaliação de Lauda sobre as forças da temporada estavam se concretizando. Os cinco primeiros pilotos na tabela estavam com a seguinte pontuação:

1. Niki Lauda, 33 pontos;

2. Mario Andretti e Jody Scheckter, 32;

4. Carlos Reutemann, 28;

5. Gunnar Nilson, 16

A liderança de Lauda por margem tão apertada já era um indício também de que o campeonato de 1977 foi um dos mais disputados da história. A Lotus havia até ali conquistado quatro vitórias (três com Andretti e uma com Nilson), a Wolf e a Ferrari tinham duas vitórias cada e a surpresa ficava por conta da vitória da Ligier com Jacques Laffite na Suécia.

A segunda metade do campeonato vê Lauda manter a regularidade. Ele obtém mais duas vitórias, sendo uma delas na Alemanha, se não na mesma pista – em 77 o GP alemão passou a ser em Hockenheim – mas no país onde um ano antes quase perdera a vida. A outra vitória foi em Zandvoort, na Holanda. E nessa corrida, já com uma boa margem na liderança, ele decide sair da Ferrari e assina com a Brabham para 78.

httpv://youtu.be/jQwxVEDt_Lg
vitória de Niki Lauda no GP da Holanda

A etapa seguinte foi em Monza. Lá praticamente Lauda assegura o título, terminando a prova na segunda colocação. No final de semana desse GP, ele comunica a Ferrari a sua decisão de sair e, segundo ele, essa foi uma decisão tomada em momento de raiva:

“Em Zandvoort, a décima terceira corrida de uma temporada com dezessete, o tempo era oportuno: eu assinei com Ecclestone e Brabham. Teve que ser um segredo, é claro, senão meus esforços para o título seriam em vão. Il Commendatore estava de novo ansioso para renovar meu contrato pela quarta temporada, e eu tive que dar uma desculpa boba para atrasar as negociações.

Eu estava feliz que minha saída ia ser um tapa na cara de Enzo Ferrari. Na época, no entanto, minha raiva era tanta que eu simplesmente não o dei uma chance. Eu gostei de ter declinado da oferta mais generosa que ele já fez. Eu estava bem e não dei satisfações. “Não quero mais ficar aqui, apenas isso”. Fim e tchau.

Eu estava feliz quando saí.

Quando consegui assegurar o título pela segunda vez, eu não senti vontade de abaixar a cabeça para a atmosfera ridícula, então recusei correr no Canadá e no Japão. Eu tive um substituto digno – Gilles Villeneuve.”

Alguns anos depois, Lauda declarou sobre o final de sua relação com a Ferrari:

Hoje vejo as coisas de uma maneira um pouco diferente. Não foi realmente uma luta justa. Eu era jovem. Eu era forte. Eu podia tomar minhas próprias decisões. Ferrari tinha 78 anos, cercado por brilhantes “conselheiros”, e recebeu a informação por terceiros.

Hoje para mim, o capítulo está encerrado, minha raiva está dissipada. Eu saí com o fato de que Enzo Ferrari fez o possível para que eu corresse num dos melhores times. Eu saí com quinze vitórias, doze 2° lugares e cinco 3° lugares. Eu saí com 23 poles, 248 pontos e 2 títulos. E eu saí com muito amor pela Itália e pelo que é italiano.

Quando Enzo Ferrari me enviou um telegrama de felicitações quando Lukas nasceu, eu assumi que sua atitude em relação a mim havia mudado, assim como a minha por ele. Com a passagem do tempo, meu respeito por este grande nome da corrida e suas realizações ultrapassaram tudo.

Hoje eu até possuo uma versão de rua da Ferrari – devo estar ficando sentimental com a idade”.

A temporada de 1977 fez de Niki Lauda novamente campeão mundial. Olhando e avaliando o que ocorreu naqueles dezessete GPs, vemos que oito pilotos diferentes ganharam corridas, sendo três deles pela primeira vez. Foi uma das temporadas mais equilibrada dos anos setenta.

Venceu aquele que soube dizer “Não” a dor mental ao qual estava sendo submetido no inicio do campeonato, um Não que se juntou a outros dois em sua carreira. Esta mesma força o levaria, ainda, a voltar para a F1 em 82 após a desistência em 79 – de forma abrupta, como seu velho rival Hunt – para ser tricampeão numa era diferente, contra uma geração diferente. Nenhum outro piloto na história da Fórmula 1 passou por tal desafio.

Abraços,

Mário

Mário Salustiano
Mário Salustiano
Entusiasta de automobilismo desde 1972, possui especial interesse pelas histórias pessoais e como os pilotos desenvolvem suas carreiras. Gosta de paralelos entre a F1 e o cotidiano.

8 Comments

  1. Renato Camurça disse:

    Somente dois pilotos despediram Enzo Ferrari: Juan Manuel Fangio e Niki Lauda, TODOS os outros foram despedidos. A técnica de Laura era simplesmente incrível, direção limpa, suave, dando a impressão de estar bem mais lento que os adversários, otimizando pneus, motor, combustível, tudo. Leiam sobre sua vitória no GP da África do Sul em 1977, uma obra prima, já que a Ferrari tinha sido atingida por um pedaço do carro de Tom Pryce. Lauda terminou a corrida em primeiro lugar, com o marcador de óleo e água no vermelho: havia perdido 8 litros dos 13 de água e dos 6 litros de óleo terminou com 1,5. Nunca vi nenhum piloto voltar literalmente do mundo dos mortos e ser campeão no ano seguinte, mais que uma proeza esportiva é uma lição de vida que todos os médicos deveriam dar.

  2. wladimir duarte sales disse:

    Comecei a ter alguma noção de F1 em 1983 com o bicampeonato de Piquet. Em 1984 vi o show de Senna em Mônaco e, embora Jacky Ickx negasse, não há como não perceber certa manipulação de resultado pela parada prematura da corrida uma vez que um dos líderes do campeonato guiando pela equipe favorita ao título estava a frente. Mas o tiro saiu pela culatra por mísero meio ponto a favor de Niki Lauda naquele campeonato. O que prova que também foi uma temporada disputadíssima. Todas as vezes que eu via Lauda no pódio perguntava, na minha ingenuidade pré-adolescente,”O que houve com ele? Por que ele tem a cabeça cheia de queimaduras?” Ninguém sabia responder. Só descobri em detalhes no anuário “motores 77” que adquiri num sebo. A volta da McLaren às vitórias e aos títulos deve-se não só a Prost mas também, especialmente, a Niki Lauda que voltou da aposentadoria e venceu depois de duas corridas a seguir ao seu retorno. O que me aborrece é ler uma entrevista com Jo Ramirez onde este afirma que Lauda não era tão habilidoso como Prost, Mansell ou Senna e que só era reverenciado por ter sobrevivido ao acidente no “Inferno verde” em 1976. Mesmo sendo opinião pessoal dele achei uma falta de respeito com o grande campeão que é Lauda não só como piloto mas como homem pois vencer a morte e mais dois campeonatos só atesta sua grandeza. Se alguém tiver mais detalhes a acrescentar ou corrigir estou aberto a réplicas. Obrigado.

  3. Fernando Marques disse:

    Mario,

    parabéns, valeu esperar pela segunda parte do texto.
    Niki Lauda para mim foi um monstro nas pistas e estará sempre entre os meus favoritos. A sua carreira na Formula 1, por tudo que aconteceu com ele nas pistas realmente é digna de uma bela historia, um belo drama.
    Quando ele surgiu na Ferrari em 74, principalmente pelo fato da Ferrari estar competitiva, pensei: este é o homem a ser batido pelo Emerson, que aliás venceu de forma magnifica o campeonato naquele ano. A conquista do Rato, não diminuiu em nada a certeza que todos na Formula 1 de que ele seria campeão também, ainda mais com uma Ferrari que parecia imbatível. Foi o que aconteceu em 75 e não aconteceu em 76 por causa do seu acidente. Até aquele momento ele liderava com folga o campeonato.Foi uma pena Emerson ter resolvido a partir de 76 seguir a sua carreira na Copersucar, pois a minha expectativa era o dever belos duelos entre aqueles que eram disparados os dois melhores pilotos da Formula 1 naquela 2ª metade da década de 70.
    Agora sempre me chamou também a atenção pelo fato dele, principalmente após o acidente, não ter sido muito querido pelos seus adversários fora das pistas, o que a meu ver mancha um pouco a sua carreira.

    Show de bola pela coluna.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Ronaldo de Melo disse:

      Não consigo entender até hoje o que teria motivado o Emerson a deixar um carro vencedor para buscar não sei o que na copersucar. Talvez acreditasse que pudesse tornar os carros nacionais competitivos como fez com a M23, com a qual levou uma taça e preparou a de 1976. Não levando em consideração, contudo, que a McLaren é uma equipe vencedora desde o seu terceiro ano de existência.

  4. Ronaldo de Melo disse:

    Por esse personagem e por outros, maiores ou tão grandes quanto, que a Fórmula 1 é esse esporte tão amado, hoje e sempre. E será daqui trinta anos, quando tivermos novos entusiastas do que já passou celebrando os feitos de Hamilton, Alonso, Vettel, Raikkonen, etc, uma das gerações mais abençoadas da história do esporte a motor.

    Os críticos, infelizmente, também fazem parte do espetáculo, e sua amargura faz o espetáculo muitas vezes mais doce. Temos que conviver com eles, assim como com uma corrida chata eventualmente. Paciência! Mas queria entender que tipo de grilhão mantém uma pessoa presa em frente à TV, assistindo um esporte enfadonho, que não é nem uma sombra do que oi antigamente, cujos pilotos não são homens de verdade, mimados e chorões.

    Despertar paixões tem disso: Os invejosos estão sempre por aí!

  5. Helton Oliveira disse:

    Que texto sensacional ! vc lê com tanto entusiasmo, que pula as linhas, depois tem que ler de novo !
    Parabens !

  6. Geraldo Flávio Chaves disse:

    Não tive o privilégio de ver Lauda correr! Mas a cada texto que leio ou pesquiso alguma coisa sobre esta pessoa fico admirado com a forma e o jeito que este sujeito encarava e encara a vida!
    Sensacional texto!
    Sensacional LAUDA!

  7. Mauro Santana disse:

    Texto Fantástico Mario, Fantástico!!!!

    A temporada de 1977 foi realmente um show, e Lauda é uma verdadeira LENDA!!!

    É por isso que hoje, quando falo que a F1 de antigamente(mais precisamente dos anos 70 e 80) era melhor, são por causa de pilotos com atitudes assim, atitudes de campeões, cabras machos mesmo, e é por isso que a F1 de antigamente era apaixonante.

    Hoje, infelizmente a F1 não levanta mais paixão alguma, e os pilotos são cada vez mais piazinhos mimados e chorões.

    Grande Lauda!!!!

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

Deixe um comentário para Renato Camurça Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *